já haviam me cantado a pedra. quando você tem filho, vem um tsunami em cima de todas as suas relações. absolutamente todas: inclusive consigo mesma. depois do alagamento total, da ventania, das árvores caídas no chão, algumas pessoas se agarram nos galhos. você olha para cima e de repente tem uma amiga abraçada no topo de um coqueiro dizendo “eu tô aqui, eu continuo aquiiii!”. mas, também, tem muito amigo que desaparece. e você fica assim: será que o tsunami levou essa minha amizade para sempre?
não sou de guardar mágoas, tenho um coração ariano demais para viver de nostalgias. embora, sim, goste de revisitar as memórias ~ inclusive as que esqueço. mas a mágoa é um veneno que impede a gente de mirar no futuro e, principalmente, de alimentar com gosto o tempo presente. por isso, talvez, escreva esse texto. justamente porque não quero alimentar esse sentimento tão nocivo. jogar o que sinto nessas palavras é uma forma de seguir adiante, com leveza.
uma mulher que acaba de parir é um animal selvagem. e, quando digo “acaba de parir”, pode significar também quase 1 ano e 3 meses depois de dar a luz, como é o meu caso. o tal do puerpério emocional não tem muito padrão. para algumas mulheres dura meses, para outras, anos.
imagine você gerar um cérebro. um rim. um coração. imagine o seu corpo se expandir a tal ponto que você olha para ele e não se reconhece. imagine todos os seus órgãos mudando de lugar. a sua caixa torácica apertada e sem espaços para ir e vir. imagine. imagine o mal estar de algumas, o medo de outras, as complicações de muitas. imagine a náusea, imagine o torpor, imagine a loucura.
ter um filho é algo extra-ordinário. é uma coisa tão tão grande, que fica até difícil descrever, nomear, se conectar com isso sem se emocionar.
outro dia li um texto muito bonito do winnicott. uma mulher que vai parir está indo para um campo de batalha. ela não sabe se volta. é como um soldado que vai para a guerra. e a grande verdade é que, acho eu, que mesmo voltando com vida, a gente não exatamente volta. uma mulher morre, outra nasce. uma nova mulher.
a nova julia que ainda não reconhece a sua própria pele nem o novo jeito de cuidar das suas pregas vocais, sente falta de muitos amigos. fiquei chocada quando me aconteceu: amigos íntimos desapareceram no tsunami. aquela amiga de infância, aquele amigo que disse estaria sempre ali, aquela amiga que te ligava sempre. mas o meu coração não quer viver de ressentimentos: que a deusa me livre. muitos amigos brotaram de dentro das águas. alguns que nem imaginava. outros que nunca foram próximos, foram chegando. muitos nasceram, muitos ainda nascem. a maternidade também traz um cardume de gente maravilhosa. peixinhos coloridos na correnteza. água salgada que me lava e me salva, todos os dias.
quanto aos amigos que sumiram no meio das ondas do mar, às vezes bate uma noia. será que hoje sou uma pessoa menos interessante porque me tornei mãe? mas a julia (ainda que ainda meio desconhecida), continua aqui. se descobrindo, se entendendo, mas aqui. e, para falar a verdade, hoje me acho bem mais interessante, real oficial. sem espaço para falsa modéstia, porque…né? não tem nada mais poderoso do que gerar um ser humano. e, honestamente, quero mais é estar com quem também quer estar com a minha filha.
o meu desejo é que os meus amigos possam estar comigo nas coisas extraordinárias. não só quando a barra pesa, não só para ir num bloco de carnaval ou para fazer uma piada. que possam segurar na minha mão quando os tsunamis da vida vierem. e que também se segurem no coqueiro quando eu não me reconhecer no espelho e digam “eu estou aquiiii!!”
o meu desejo é também poder estar exatamente assim, para eles. uma coisa que a maternidade nos traz é uma capacidade muito grande de discernimento. justamente pelo fato de não termos mais todo o tempo do mundo, aquilo que escolhemos tem muita força.
aquele que escolhemos para andar junto da gente, tem muita força.
obrigada aos amigos que sobreviveram ao tsunami.
obrigada aos amigos que vieram no meio das águas.
obrigada a quem não tem medo de entrar no mar.
odoyá!
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