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Foto do escritorJulia Branco




já haviam me cantado a pedra. quando você tem filho, vem um tsunami em cima de todas as suas relações. absolutamente todas: inclusive consigo mesma. depois do alagamento total, da ventania, das árvores caídas no chão, algumas pessoas se agarram nos galhos. você olha para cima e de repente tem uma amiga abraçada no topo de um coqueiro dizendo “eu tô aqui, eu continuo aquiiii!”. mas, também, tem muito amigo que desaparece. e você fica assim: será que o tsunami levou essa minha amizade para sempre?

não sou de guardar mágoas, tenho um coração ariano demais para viver de nostalgias. embora, sim, goste de revisitar as memórias ~ inclusive as que esqueço. mas a mágoa é um veneno que impede a gente de mirar no futuro e, principalmente, de alimentar com gosto o tempo presente. por isso, talvez, escreva esse texto. justamente porque não quero alimentar esse sentimento tão nocivo. jogar o que sinto nessas palavras é uma forma de seguir adiante, com leveza.

uma mulher que acaba de parir é um animal selvagem. e, quando digo “acaba de parir”, pode significar também quase 1 ano e 3 meses depois de dar a luz, como é o meu caso. o tal do puerpério emocional não tem muito padrão. para algumas mulheres dura meses, para outras, anos.

imagine você gerar um cérebro. um rim. um coração. imagine o seu corpo se expandir a tal ponto que você olha para ele e não se reconhece. imagine todos os seus órgãos mudando de lugar. a sua caixa torácica apertada e sem espaços para ir e vir. imagine. imagine o mal estar de algumas, o medo de outras, as complicações de muitas. imagine a náusea, imagine o torpor, imagine a loucura.

ter um filho é algo extra-ordinário. é uma coisa tão tão grande, que fica até difícil descrever, nomear, se conectar com isso sem se emocionar.

outro dia li um texto muito bonito do winnicott. uma mulher que vai parir está indo para um campo de batalha. ela não sabe se volta. é como um soldado que vai para a guerra. e a grande verdade é que, acho eu, que mesmo voltando com vida, a gente não exatamente volta. uma mulher morre, outra nasce. uma nova mulher.

a nova julia que ainda não reconhece a sua própria pele nem o novo jeito de cuidar das suas pregas vocais, sente falta de muitos amigos. fiquei chocada quando me aconteceu: amigos íntimos desapareceram no tsunami. aquela amiga de infância, aquele amigo que disse estaria sempre ali, aquela amiga que te ligava sempre. mas o meu coração não quer viver de ressentimentos: que a deusa me livre. muitos amigos brotaram de dentro das águas. alguns que nem imaginava. outros que nunca foram próximos, foram chegando. muitos nasceram, muitos ainda nascem. a maternidade também traz um cardume de gente maravilhosa. peixinhos coloridos na correnteza. água salgada que me lava e me salva, todos os dias.

quanto aos amigos que sumiram no meio das ondas do mar, às vezes bate uma noia. será que hoje sou uma pessoa menos interessante porque me tornei mãe? mas a julia (ainda que ainda meio desconhecida), continua aqui. se descobrindo, se entendendo, mas aqui. e, para falar a verdade, hoje me acho bem mais interessante, real oficial. sem espaço para falsa modéstia, porque…né? não tem nada mais poderoso do que gerar um ser humano. e, honestamente, quero mais é estar com quem também quer estar com a minha filha.

o meu desejo é que os meus amigos possam estar comigo nas coisas extraordinárias. não só quando a barra pesa, não só para ir num bloco de carnaval ou para fazer uma piada. que possam segurar na minha mão quando os tsunamis da vida vierem. e que também se segurem no coqueiro quando eu não me reconhecer no espelho e digam “eu estou aquiiii!!”

o meu desejo é também poder estar exatamente assim, para eles. uma coisa que a maternidade nos traz é uma capacidade muito grande de discernimento. justamente pelo fato de não termos mais todo o tempo do mundo, aquilo que escolhemos tem muita força.

aquele que escolhemos para andar junto da gente, tem muita força.

obrigada aos amigos que sobreviveram ao tsunami.

obrigada aos amigos que vieram no meio das águas.

obrigada a quem não tem medo de entrar no mar.


odoyá!


🌊

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Foto do escritorJulia Branco

meu companheiro me disse enquanto eu pegava a nossa filha para fazê-la dormir “numa próxima vida, tente fechar as portas que você abrir.” ri baixinho. ele também. a referência era ao fato de eu sempre abrir todas as portas da casa e jamais fechá-las. e o conselho dele tinha a ver com fato de que para fazer a nossa filha dormir a gente precisava sobretudo da casa escura, em penumbra. coisa que milhões de portas abertas acabavam dificultando, uma vez que alguma delas deixaria passar a luz, óbvio. mas recebi essa mensagem do meu amor quase em oráculo. ou melhor, em metáfora. para a pessoa do signo de áries que sou, minha maior dificuldade talvez seja essa: aprender a fechar as portas que abri.


gosto de começar coisas. projetos, cartas, e-mails, músicas, amizades. meu compromisso é com a alegria e com o instante inaugural. já disse isso uma vez numa canção e a faísca do início me chama. tenho um comichão interno quando estou pra fazer uma aula experimental de algo, se sou chamada pra um novo trabalho, se vou viajar para um lugar jamais visitado. o frisson da novidade, adoro. segundas-feiras, amo cada vez mais. a possibilidade de iniciar qualquer coisa que seja (um curso, uma conversa, um livro, uma série do netflix…) vai sempre me encher de vida. o meu problema é com a conclusão.


lembro quando era criança e queria brincar de alguma coisa, tipo de barbie, risos. preparava tudo pra brincadeira, montava a casa da barbie, movélzinho por movélzinho, pegava todos as bonecas and bonecos possíveis, penteava os cabelos deles e delas, montava um circo. quando tava pronta pra brincar, tava enjoada, queria a próxima novidade. a casa da barbie já não era tão legal. e aí começava outra coisa. minha mãe chegava do trabalho e via aquele quarto cheio de inícios e tentava: “filha, vamos aprender a guardar o que você não quer mais antes de pegar outro brinquedo…” não sei se as palavras da minha mãe faziam sentido em algum sentido em mim. a vida é grande, tem tanta coisa que quero fazer! como é difícil fixar a minha atenção em apenas uma escolha.


já me perguntei se tenho déficit de atenção. mas acho que, em 2022, todo mundo tem déficit de atenção. como ser focado em apenas uma coisa numa vida com tantos estímulos? fato é que agora já não tenho todo o tempo do mundo. sou mãe de uma bebê de 11 meses que me convoca para um estado de presença que não cabe nas notificações do whatsapp. tenho que fazer escolhas, sim ou sim. e, aquilo que escolho, por conta do meu tempo agora tão escasso, precisa ser levado até a última gota. não posso mais começar coisas sem concluir. não há possibilidade de eu me dar esse luxo.


talvez a minha dificuldade em fechar portas esteja aí: tenho muito medo da morte. nunca gostei de despedidas. o inconcluso talvez seja o mais perto de ser infinito? talvez. mas ser uma pessoa adulta tem a ver com saber que se não encerramos ciclos, nada de novo irá brotar. e, pra quem ama tanto os inícios como eu, é preciso aprender a honrar os fins.


tô tentando encontrar uma forma de finalizar esse texto e, veja só, já tenho um comichão de ir fazer outra coisa e voltar aqui mais tarde. mas, não. vou concluir ainda que não seja fique totalmente satisfeita. venho aprendendo a fechar portas, ainda que seja difícil. venho, sobretudo, aprendendo a não abrir todas as portas que aparecem. sou finita, não tenho um tempo inesgotável, preciso aprender a escolher.


talvez a minha grande escolha tenha sido me casar com um taurino. se a gente entrar no papo de signos, touro é esse signo que não desiste. que vai fundo naquilo que começou.


com o meu companheiro, com o meu amor, tenho aprendido a permanecer. e amado muito estar aqui. exatamente aqui.



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Foto do escritorJulia Branco


a minha solidão conhece a sua. milhares de mulheres mães do mundo interligadas por um feixe de luz invisível. todas insones nas madrugadas adentro de peito pra fora numa grande egrégora. silenciosamente enxugando as lágrimas, silenciosamente dando conta do impossível e sem dar muita vez ao tamanho do cansaço. querendo gritar nas janelas, abrir clareiras, mergulhar em banheiras cheias de espuma & água quentinha. sozinhas ainda que sempre acompanhadas, sozinhas ainda que falando sempre com as amigas, sozinhas ainda que com companheiros, companheiras, companheires. mais sozinhas ainda se são totalmente solo. a maternidade é uma fenda no tempo, é um salto pela janela onde não se vê o que tem embaixo, é uma montanha russa de medos, amor, saudades, luto, desejo, apatia, inseguranças, falta de tempo, paranóias, indignações, mais amor, muito amor, um amor que chega a doer naquele ponto do corpo perto do plexo solar, sabe? na boca do estômago, na porta da angústia. me sinto muito sozinha e sei que você também. a minha solidão conhece a sua, mas elas não se cruzam exatamente. há milhões de coisas na sua história que jamais serei capaz de acessar e você também não vai conseguir acessar tudo aquilo que sinto. e aí não há equivalência alguma. mas existem pontes. sei que você passa por algo tão desconhecido quanto eu e por isso sou solidária. além de solitária. uma parte imensa de mim morreu e tem outra completamente desconhecida na minha frente. não sei mais do que gosto, não sei qual minha comida preferida, que tipo de roupa me veste, que sonho faz parte do meu coração agora. continuo buscando, mas tem muita névoa e se me afasto da minha cria fico ainda mais sem chão, mesmo sabendo que preciso às vezes de distância pra poder me localizar no meio de tanto nevoeiro. dizem que um dia a gente atravessa, mas não sei se há forma de parar de sentir esse aperto no peito misturado com saudade misturado com medo misturado com vontade misturado com gratidão misturado com o desejo de controlar absolutamente tudo. se ainda o mundo ajudasse. se ainda nos dessem tempo de sentir e de poder se abismar diante de tanta vida, diante de tanta radicalidade. todas as mães do mundo se encontram em estado de solidão. de mãos vazias numa madrugada fria sem tempo pra poder dizer que cuidam umas das outras. em silêncio. em telepatia. em poeira cósmica. sendo braço estendido e ouvido atento. transpirando ocitocina, abraçando o mistério, eremitas de si mesmas, no mais dentro dentro dentro.

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